Causa Nossa
Blogue fundado em 22 de Novembro de 2003 por Ana Gomes, Jorge Wemans, Luís Filipe Borges, Luís Nazaré, Luís Osório, Maria Manuel Leitão Marques, Vicente Jorge Silva e Vital Moreira
segunda-feira, 5 de maio de 2025
Stars & Stripes (21): Tiro pela culatra
sábado, 3 de maio de 2025
Rasto no tempo (3): Uma homenagem devida
sexta-feira, 2 de maio de 2025
Eleições parlamentares 2025 (15): Montenegro "apanhado"
1. Esta estória da correção da declaração de interesses de Montenegro, por intimação da Entidade da Transparência, contada AQUI, mostra duas coisas muito importantes: (i) que ele faltava à verdade ao garantir que tinha declarado tudo o que era legalmente necessário, quando afinal tinha omitido vários clientes da sua empresa pessoal de prestação de serviços, a Spinumviva; (ii) que o PS tinha toda a razão, ao incluir no seu requerimento de inquérito parlamentar justamente o controlo da veracidade da declaração de interesses do Primeiro-Ministro.
Mas esta estória mostra mais: que Montenegro optou por esgotar o prazo de 30 dias dado pela Entidade da Transparência para a correção da falta, a fim de adiar ao máximo o seu conhecimento público, como é devido, quiçá para depois das eleições. Não é propriamente uma conduta digna de um líder partidário que se propõe renovar o seu mandato na chefia do Governo.
2. Todavia, a notícia da correção que lhe foi exigida veio destruir a sua laboriosa tentativa de meter o caso da sua empresa pessoal "debaixo do tapete" durante a campanha eleitoral e reavivar a suspeita, bem mais grave, sobre a violação da exclusividade como governante, que também era objeto do inquérito parlamentar do PS, e cujo esclarecimento Montenegro persiste em recusar, não exibindo os documentos que provem que não continuou a ser o verdadeiro responsável pela prestação de serviços da sua empresa, nem a beneficiar das respetivas avenças.
É de novo a dúvida sobre o cumprimento das obrigações legais (e não somente éticas) quanto a transparência e a incompatibilidades do PM cessante que está de novo na praça pública.
segunda-feira, 28 de abril de 2025
Amanhã vou estar aqui (21): Nos 199 anos da Carta Constitucional de 1826
sábado, 26 de abril de 2025
Memórias acidentais (27): Deputado constituinte (1975-76)
1. A passagem, ontem assinalada, dos 50 anos das eleições constituintes de 25/4/1975 trouxe-me à memória alguns aspetos da minha atividade como deputado constituinte, em 1975-76, que culminou na aprovação da Constituição de 1976.
Ainda não tinha 30 anos, era assistente da Faculdade de Direito da UC e, por causa da revolução, interrompera a preparação do doutoramento em teoria da Constituição que estava a preparar em Londres, tendo regressado logo a Portugal, envolvendo-me em pleno na atividade política.
Comecei por não ser diretamente eleito, pois o PCP só elegeu um deputado no círculo eleitoral de Coimbra, e eu era o 2º candidato, a seguir ao dirigente nacional do partido, Blanqui Teixeira. Mas não tardei a rumar para Lisboa, pois logo no início dos trabalhos da Constituinte ele pediu a renúncia ao mandato para me fazer entrar, desde logo porque só havia outro jurista no grupo de deputados (o advogado José Lopes de Almeida) e eu era o único que tinha algum conhecimento de direito constitucional, tendo defendido a minha tese de pós-graduação nessa área, pelo que integrava o grupo de trabalho encarregado da elaboração do projeto de Constituição do partido, juntamente com os meus amigos e colegas da FDUC, J. J. Gomes Canotilho e Aníbal Almeida.
Por essa razão, e por poder suspender a atividade profissional e não ter responsabilidades partidárias, como muitos outros deputados, pude entregar-me em dedicação plena à minha nova tarefa, com a consciência de que era para mim uma oportunidade histórica de participar no desenho de uma nova Constituição do País.
2. Acresce que no chamado "verão quente" de 1975, o PCP estava mais empenhado na revolução do que na Constituição, o que se refletia no relativo desinteresse que os dirigentes do partido, incluindo o presidente do grupo parlamentar, Otávio Pato, dedicavam ao Palácio de São Bento, em especial no que se referia à preparação da Constituição.
Nessas circunsbtâncias, acabei por assumir informalmente o papel de principal porta-voz do partido na Constituinte, quer nos debates no plenário, quer no trabalho de várias comissões, nomeadamente na principal delas, a V Comissão, encarregada da organização do poder político, ou seja, de grande parte da Constituição, mas também nas comissões de princípios fundamentais, do poder local, das disposições finais e transitórias e na comissão de redação final (de que tive a honra de ser relator perante o plenário da Constituinte). Durante grande parte do tempo, não recebia e raramente pedia instruções à direção do partido sobre as questões constituintes, limitando-me a enviar um relatório semanal sobre o andamento dos trabalhos e sobre as posições por nós adotadas (relatórios que ainda devo ter guardados algures).
Não admira, por isso, que, como mostra a figura abaixo (colhida num livro sobre a Assembleia Constituinte referido em post anterior), eu tenha sido o deputado mais interventivo, o que, ressalvados alguns dispensáveis excessos oratórios, revela o meu profundo empenho e a minha dedicação absoluta à tarefa constituinte.
3. Entre as minhas preocupações políticas em São Bento avultava uma, que era a de manter o PCP efetivamente comprometido com a elaboração da Constituição, de modo a não alimentar a impressão de que ele era hostil à Constituinte, como podia resultar de alguma imprensa que lhe era afeta, pois essa perceção contrariava a genuína preocupação partidária de garantir proteção constitucional para as chamadas "conquistas revolucionárias" (descolonização, democracia, liberdades públicas e direitos dos trabalhadores, "organizações populares de base", nacionalizações e reforma agrária). Julgo que tive alguma responsabilidade em «encostar a Constituição à esquerda», como alguém já escreveu.
Não foi por acaso que, depois do fim do ciclo revolucionário, com o Termidor do 25 de novembro de 1975, o PCP tivesse passado a dar uma nova atenção à Constituinte, acabando por saudar e votar de bom-grado a Constituição, justamente por esta ter salvaguardado o acquis revolucionário e, em alguns casos, ter ido além dele (por exemplo, nos direitos sociais, como o SNS, e até no capítulo da organização económica).
Sem falsa modéstia, julgo ter contribuído para essa relação de amizade constitucional do PCP, que foi decisiva para manter o compromisso do partido com o regime democrático-constitucional, sem quebras ao longo dos anos.
sexta-feira, 25 de abril de 2025
História política (4): As eleições constituintes de há 50 anos
1. Duas exposições assinalam em Lisboa as eleições constituintes de 25 de abril de 1975: uma na Fundação Gulbenkian, inaugurada há dias, que é uma iniciativa da Comissão de comemoração dos 50 anos do 25A, e outra na AR, hoje inaugurada, logo após a sessão comemorativa do 25 de Abril, este ano também comemorativa dos 50 anos das eleições, com a presença de vários deputados constituintes, convidados para o efeito.
- por elas terem sido eleições sem precedente nossa história política em diversos aspetos: primeiras eleições por sufrágio universal, pela primeira vez por voto genuinamente pessoal e secreto (expresso pelos próprio eleitores em cabine na própria assembleia eleitoral), em competição pluripartidária, com atribuição proporcional de mandatos (que em 1911 só tinha sido aplicada nos círculos eleitorais de Lisboa e do Porto) e com representação dos residentes no estrangeiro (embora só com um deputado);
As mais democráticas eleições, portanto, que deram origem também à mais democrática Constituição.
2. A mais ambiciosa das duas referidas exposições, a da Gulbenkian, começa por recordar a ficção das eleições (presidenciais e legislativas) durante a ditadura do chamado "Estado Novo" e as tentativas da oposição democrática, na sua diversidade, de as aproveitar para denunciar o regime e mobilizar o combate contra ele, com destaque para a épica campanha presidencial de Humberto Delgado em 1958 e a animada campanha das eleições legislativas de 1969.
Quanto às eleições de 1975, a exposição fornece notável informação histórica, quer documental quer visual, sobre a sua preparação e a sua realização, incluindo profusa ilustração da campanha eleitoral e sobre a noite eleitoral e os resultados, com recurso a registos televisivos da época. Uma notável evocação!
Lamentavelmente, a exposição não é acompanhada de catálogo que perpetue o grande acervo informativo nela disponibilizado.
- primeiro, é de estranhar a simples referência de passagem à grave tentativa de violar o programa do MFA quanto às eleições constituintes, que foi a proposta de Spínola e de Palma Carlos - respetivamente, o primeiro PR e e o primeiro PM a seguir à Revolução -, logo em julho de 1974, para a convocação imediata de eleições presidenciais e de plebiscito de uma "Constituição provisória", o que teria matado a revolução à nascença;
- segundo, não compartilho a ideia de que em 1975, a seguir ao 11 de março, as eleições estiveram em sério risco de não se realizarem ou de serem indefinidamente adiadas, pois só estavam contra elas os micropartidos de extrema-esquerda, com escasso peso político, apesar da sua visibilidade política nas ruas de Lisboa e em alguns jornais, e uma pequena fação radical do MFA, sem eco, porém, na direção do movimento;
A história deste período fundador do atual regime democrático não beneficia com a veiculação de perceções que, embora tendo existido em alguns círculos políticos da época, não tinham substrato suficiente para vingar.
terça-feira, 22 de abril de 2025
Manifesto dos 50 pela Reforma da Justiça (12): Um livro para agitar as águas
segunda-feira, 21 de abril de 2025
História política (3): Meio século depois do 25A
Participei hoje na conferência organizada pelo Banco de Portugal, sob o lema "Falar em Liberdade", para comemorar os 50 anos do 25 de Abril (programa AQUI). Sendo ele próprio um "filho da Revolução" enquanto banco nacional, pois lhe deve a nacionalização logo em setembro de 1974, bem como o relevo público e a legitimidade de que hoje goza, justifica-se plenamente este iniciativa institucional.
Acompanhada pelo livro cuja capa se reproduz acima, notavelmente ilustrado com fotos e gráficos, onde se podem verificar os avanços económicos e sociais alcançadas ao fim deste meio século da história nacional (que também se podem consultar on-line AQUI), a conferência, aberta pelo Governador do Banco, Mário Centeno, seguido de Paul Krugman, e encerrada pela escritora Lídia Jorge, foi dedicada, nos seus vários painéis, à leitura histórico-política das principais motivos da Revolução, nomeadamente a liberdade (em cujo painel intervim), a democracia e a descolonização.
Se é possível retirar uma conclusão geral desta conferência e do livro que a acompanhou, podemos dizer que, depois de várias experiências revolucionárias falhadas ao longo de século e meio, desde 1820 (o vintismo, o setembrismo e o republicanismo), desta vez conseguimos ser bem-sucedidos na construção de um Estado constitucional solidamente baseado na liberdade, na democracia e na solidariedade social, e capaz de vencer o teste do tempo e das adversidades do mundo de hoje.
sexta-feira, 18 de abril de 2025
Este País não tem emenda (37): Grau zero de civismo
1. Estas duas fotos no mesmo local da minha rua - a de cima foi tirada hoje e a de baixo tem poucas semanas - revelam, mais uma vez, o aberrante défice de civismo que impera entre nós, em que as pessoas deitam para a rua e os passeios os "monos" lá de casa, que lá ficam dias e dias a ocupar os passeios e a poluir o ambiente visual, em vez de utilizarem, com uma simples chamada telefónica, o serviço que o município disponibiliza para o efeito.
quarta-feira, 16 de abril de 2025
Manifesto dos 50 pela reforma da Justiça (11): O Ministério Público não tem emenda
Será que basta um denúncia anónima, sem nenhum indício conhecido, para que o Ministério Público inicie uma suposta "averiguação preventiva" contra o líder de um partido (neste caso, o líder do PS) e a anuncie publicamente em pleno debate eleitoral, sabendo que isso vai causar automaticamente especulações sobre a integridade do visado e prejudicar a sua campanha?
Para além da falta de base legal - que criminalistas credenciados contestam (como se pode ver convincentemente AQUI) -, será que o PGR não se dá conta de que, ao entrar por aí, utilizando seletivamente esse mecanismo, abre a porta a denúncias oportunistas, sem nenhuma relevância penal, como arma letal de combate eleitoral, hoje contra o líder do PS, e amanhã contra qualquer outro?
Decididamente, o MP não tem emenda, nem um módico de prudência, na sua tentação de instrumentalização da investigação penal para efeitos de perseguição política.
segunda-feira, 14 de abril de 2025
A teimosia dos factos (2): O século chinês?
Tal como o século XX foi norte-americano, quanto ao poder económico e político; o século XIX, britânico; o século XVIII, francês; o século XVII, espanhol -, tudo indica que o século XXI vai ser chinês!
sábado, 12 de abril de 2025
Eleições presidenciais 2026 (15): O Presidente mediador
1. Na sua recente entrevista ao Diário de Notícias, o candidato presidencial Marques Mendes, veio defender para o PR um papel de mediador entre o Governo e a oposição (ou seja, por princípio, entre o PS e o PSD, que são os principais partidos de governo), quanto aos temas que dependem politicamente de um acordo entre ambos, como é o caso da justiça.
Embora a noção de mediação presidencial não seja inédita, e seja compreendida na noção genérica corrente de "Presidente-árbitro", não deixa de ser interessante vê-la coerentemente utilizada e defendida por um candidato presidencial que, até agora, se tem distanciado das visões "semipresidencialistas" da cotitularidade do PR no poder executivo ou de tutela presidencial sobre o Governo. Bem compreendida, a ideia de mediação presidencial cabe perfeitamente na noção do PR como "quarto poder", exterior ao poder legislativo e ao poder executivo, titular de um "poder moderador" de supervisão do regular funcionamento do sistema político, da separação de poderes entre a AR e o Governo, de garantia dos direitos da oposição, de arbitragem de conflitos político-institucionais e de promotor da estabilidade política.
2. A ideia de mediação presidencial entre o(s) partido(s) de Governo e o(s) de oposição é especialmente interessante entre nós, por três razões: (i) porque ele quadra bem com o estatuto do PR no nosso sistema constitucional, como "poder neutro", independente e imparcial, entre ambos; (ii) porque o nosso sistema eleitoral não favorece maiorias parlamentares e, além disso, a Constituição exige maioria de 2/3 para a legislação sobre certos temas politicamente mais sensíveis, designadamente a legislação eleitoral, o sistema de governo das autarquais locais ou a competência legislativa das regiões autónomas e (iii) porque os dois partidos de governo têm revelado nas últimas décadas pouca propensão para a negociação e o compromisso entre eles, mesmo quando ambos estão de acordo na necesidade de reformas.
Mas para que a ideia de mediação não seja pervertida em ingerência, é necessário que o PR respeite duas condições básicas: (i) que ela seja solicitada pelas duas partes políticas intessadas sobre temas em que ambos estejam de acordo sobre a necessidade de reforma, e não "imposta" pelo PR sobre reformas acerca das quais não existe tal consenso mínimo de partida; (ii) que as duas partes se mantenham como "donos" da negociação, à margem de qualquer tentativa do PR para impor a sua própria agenda quanto às soluções.
O que nada tem a ver com mediação são os "pactos" indevidamente promovidos pelo PR entre os "stakeholders" institucionais ou profissionais, à margem dos decisores políticos, como sucedeu com o chamado Pacto da Justiça, indevidamente citado por Mendes. Pressionar Governo e oposição com pactos intercorporativos, usualmente em benefício próprio, é o contrário de mediação.
3. O risco de uma mediação presidencial mal-entendida fica patente do exemplo da justiça mencionado pelo candidato, em que ele próprio avança com as soluções que tem por óbvias, mas que podem ser deveras controversas, como sucede com certas medidas para a celeridade processual no processo-crime, quando seja à custa das garantias de defesa, e que num caso é manifestamente inconstitucional, como é a proposta de cumprimento de pena criminal ainda na pendência de recurso para o STJ, quando a CRP é clara sobre a presunção de inocência «até ao trânsito em julgado da sentença de condenação».
As boas intenções não bastam para acautelar contra a atávica tentação de intervencionismo político por parte dos inquilinos do Palácio de Belém, ou dos candidatos a irem para lá, mesmo sabendo bem que não são eleitos para legislar nem para governar, nem têm legitimidade para tal...
sexta-feira, 11 de abril de 2025
Nos 50 anos da CRP (2): Recordando a Assembleia Constituinte
1. Foi muito agradável e proveitoso participar hoje na sessão pública de lançamento de um número da Revista do IDL (o instituto de estudos do CDS) dedicado ao cinquentenário da Assembleia Constituinte de 1975-76, onde se inclui, entre numerosas outras reflexões, uma conversa entre o Professor Jorge Miranda e eu próprio, sobre a nossa experiência de deputados constituintes, por sinal entre os mais ativos e empenhados. A revista está on-line AQUI.
Presidida pelo Presidente da República, ele próprio deputado constituinte, a numerosa assistência incluiu alguns outros deputados constituintes de vários partidos, que tive a alegria de rever. Além da fala de Marcelo Rebelo de Sousa, que recordou com vivacidade o ambiente político da época, a sessão contou também com uma intervenção de Jorge Miranda, que descreveu o labor da Constituinte e os traços da Constituição que dela resultou, e outra minha, onde procurei explicar porque é que a Constituição de 1976 escapou à "maldição" das anteriores constituições revolucionárias e democráticas portuguesas (1822, 1838 e 1911), que falharam todas o teste do tempo.
2. Apraz-me felicitar publicamente o diretor do IDL, Professor Manuel Monteiro, por esta iniciativa de memória e reflexão plural sobre a formação da nossa Lei Fundamental, o que é tanto mais de elogiar quanto o CDS foi o único partido da Constituinte que votou contra a CRP em 1976, por não poder subscrever o compromisso socialista da versão originária da Constituição, vindo depois a alinhar no "arco constitucional" após a 1ª revisão, em 1982, que removeu essa barreira política e doutrinária.
Mas a verdade é que era de esperar que, por maioria de razão, também as fundações e institutos dos partidos que desde o início se identificam com a Constituição (PS, PSD e PCP) aproveitassem a oportunidade para celebrar as eleições constituintes - democráticas e participadas como nenhumas outras antes -, que há meio século legitimaram a Revolução democrática e deram início à tarefa histórica de a traduzir em letra de Lei Fundamental.
terça-feira, 8 de abril de 2025
Barbárie tauromáquica (18): Era o que faltava!
Como se não bastasse a tolerância oficial com a organização e a frequência de espetáculos tauromáquicos para gáudio público com o sofrimento animal, ainda há quem pretenda elevá-los à honra de "património cultural imaterial", como neste caso das "vacas das cordas", em Ponte de Lima.
Confiando em que a UNESCO não iria aceitar tal provocação, espero também que as autoridades nacionais responsáveis pelo património cultural rejeitem essa pretensão, que seria um primeiro passo para idêntica glorificação das touradas propriamente ditas. Por definição, a noção de património cultural deve identificar-se com valores geralmente compartilhados pela comunidade nacional, ou, pelo menos, não rejeitados por boa parte dela, como é o caso. Ser uma "tradição" local ou regional não pode bastar; a história está cheia de tradições populares baseadas na crueldade animal.
Se uma tal "condecoração" oficial da barbárie tauromáquica fosse para a frente, indo ao encontro do poderoso lobby taurino, eu estaria entre os muitos portugueses a repeli-la como um grave atentado ao conceito de Portugal como país decente e civilizado.
segunda-feira, 7 de abril de 2025
Retratos de Portugal (8): Mosteiro de Seiça
Gostei de voltar ao Convento de Seiça (município da Figueira da Foz, a sul do Mondego), para ver o resultado da recuperação das ruínas, que visitei há poucos anos (como deixei registado AQUI), e aproveitar para ver a exposição de trabalhos de Vieira da Silva, que neste momento lá se encontra patente.
Apesar da enorme destruição provocada pelo abandono e posterior uso fabril do Convento - vítima de um dos grandes desastres da história nacional, ou seja, a guerra civil entre liberais e absolutistas (1832-34) e a subsequente extinção e confisco das ordens religiosas, pelo seu apoio à usurpação miguelista -, não deixa de ser impressionante o que restou e que foi agora recuperado.
Para ver a diferença entre o antes e o depois das obras, basta comparar este vídeo de antes e as duas fotos que hoje publico, uma das ruínas da igreja e outra do claustro do convento. Um velho retrato de Portugal restaurado!
domingo, 6 de abril de 2025
Eleições parlamentares 2025 (14): O programa do PS
1. Num longo documento de 235 páginas, o PS veio apresentar o seu programa eleitoral, que, por isso, pouco gente vai ler, ficando pelas leituras seletivas dos jornais, nem sempre equilibradas.
Entre as ideias que merecem atenção estão a atribuição a cada nova criança de um pé-de-meia em certificados de aforro, a redução faseada do horário semanal de trabalho para as 37 horas e meia, ou a participação dos trabalhadores na gestão das grandes empresas (o que defendo há muitos anos).
Quanto às várias propostas de aumento de prestações e de serviços sociais (por exemplo, no SNS e no abono de família) e outras tantas de redução de encargos tributários (como a isenção do IVA nos produtos alimentares e de eliminação das propinas no ensino superior), não se compreende que um partido de vocação governamental responsável como o PS não apresente uma estimativa dos custos orçamentais do programa.
De pouco vale jurar pelo equilíbrio das contas públicas e depois apresentar medidas que, muito provavelmente, o poriam em risco.
2. Em todo o caso, não posso sufragar algumas das medidas propostas, como as já referidas quanto à eliminação do IVA sobre produtos alimentares ou das propinas do ensino superior, por não compreender porque é que se deve beneficiar toda a gente, independentemente dos meios económicos, isentando também os mais ricos do seu pagamento.
Pelo contrário, como muitas vezes já argumentei, a solução mais justa é manter essa receita pública e depois aproveitar o IVA e as propinas pagos pelos mais ricos para subsidiar o rendimento dos mais pobres, mais do que compensando as importâncias pagas por estes. Além disso, no caso das propinas não está em causa somente financiar mais bolsas de estudo, mas também sustentar a autonomia financeira das instituições de ensino superior públicas, sobretudo as do interior, que não usufruem dos contratos de investigação e de prestação de serviços de que tiram partido as instituições de Lisboa e do Porto.
Beneficiar seletivamente somente as pessoas de menores rendimentos fica mais barato, tem menos impacto sobre as contas públicas e é socialmente mais justo.
3. Uma proposta que acho de todo injustificável é a de continuar a abolir portagens em autoestradas, como se prevê em relação a vários troços, incluindo em zonas das mais prósperas do País, como é o caso do segmento da A25 entre Aveiro e Albergaria.
Para além de não comprender a isenção de pagamento de serviços de valor acrescentado, como este, que devem ser pagos pelos seus beneficiários (sob pena de serem os contribuintes em geral a pagá-los, mesmo os que não beneficiam deles), não entendo a lógica de embaretecer o transporte rodoviário, incluindo de mercadorias, apesar das pesadas "externalidades negativas" que ele tem sobre o ambiente. Não seria melhor pensar em reduzir as "portagens" de uso das linhas ferroviárias, a fim de embaretecer o transporte ferroviário, e torná-lo mais competitivo?
Um pouco mais de coerência política em matéria de transportes e embiente era bem-vinda.
[Acrescentado o nº 3.]
sábado, 5 de abril de 2025
Direito à habitação (7): Cidades-fantasma
1. Concordando com o artigo de Ricardo Reis, no Expresso desta semana, também entendo que os preços da habitação estão a subir porque a oferta não acompanha a procura, pelo que, face à dificuldade (ou mesmo impossibilidade) em travar a segunda, a única solução consiste em aumentar a primeira, colocando mais casas no mercado.
No entanto, julgo que o aumento acentuado da procura (para compra ou arrendamento), que incide sobretudo em Lisboa e no Porto, obedece a razões específicas, como a crescente concentração de atividade económica e da oferta de ensino superior nas duas principais cidades, o desvio da habitação para alojamento turístico e o aumento da procura imobiliária por estrangeiros, a que se veio somar o imprudente incentivo do atual Governo à habitação para jovens (ou seus pais), mediante a garantia de crédito.
Ora, em vez de travar a concentração económica e urbana nas duas principais cidades e de incentivar a procura noutras cidades - desde logo por obrigação constitucional de descentralização territorial e de garantia da coesão económica e social do País -, os governos têm feito o contrário, continuando a concentrar os serviços públicos e o investimento público em Lisboa.
Ora, é óbvio que o incentivo à procura só torna mais instante a necessidade de aumentar a oferta de habitação.
2. Quanto à oferta, parece evidente que o aumento da habitação pública - que deve incumbir aos municípios, e não ao Estado, por respeito do princípio constitucional da subsidiariedade - devia focar-se na garantia do direito à habitação das famílias de menores rendimentos, pelo que a resposta à demais procura de habitação deve ser deixada à oferta privada, como é próprio de uma economia de mercado, embora com os incentivos públicos justificáveis, em vez dos desincentivos ao investimento, como foi a política de congelamento das rendas.
Uma das políticas públicas incontornáveis nesse sentido deveria ser a de obrigar a trazer para o mercado os muitos milhares de edifícios privados (sem esquecer os públicos...) que, em todas as cidades, se encontram abandonados e em vários graus de deterioração, ou mesmo de ruína (na imagem acima, dois casos entre as centenas, em Coimbra), por os proprietários não terem vontade de (ou condições para) as colocarem no mercado, e não serem levados a fazerem-no, como deviam, quer por razões ambientais e de segurança, quer justamente para aumentar significativamente a oferta de habitação.
Ora, está visto que as respostas até agora ensaiadas contra este risco de "cidades-fantasma" - como o agravamento do IMI, a notificação dos proprietários para obras de reabilitação, ou mesmo as obras e o arrendamento compulsivo por via dos municípios - não funcionam, sendo necessários remédios mais eficazes, que, a meu ver, passam pelo seguinte: dar legalmente aos municípios um poder de injunção aos proprietários, acompanhada de incentivos apropriados, para, num certo prazo razoável, tornarem os prédios habitáveis, ou venderem-nos, sob pena de "sanção pecuniária compulsória", por cada mês de atraso.
Trata-se de um instrumento que tem revelado a sua grande valia em vários ramos do direito, incluindo a regulação económica e a defesa da concorrência, não havendo nenhuma razão para abdicar dele na esfera urbanística e na gestão da oferta habitacional, em particular.
3. Por razões urbanísticas, económicas e sociais, são reprováveis as situações de abandono de prédios de uso habitacional, ou suscetíveis dele.
Numa "economia social de mercado" (conceito do Tratado da UE), a propriedade imobiliária impõe obrigações, não sendo admissível um direito de propriedade absoluto, que inclua o direito ao abandono, o qual, aliás, é objeto de expressa censura constitucional entre nós. No seu art. 88º, a nossa Lei Fundamental prevê meios assaz intrusivos no direito de propriedade em relação a ativos em abandono, como o arrendamento compulsivo ou mesmo a expropriação, mas a experiência mostra que tais soluções são pouco viáveis e que é preferível o poder público incentivar e, em última instância, compelir, os proprietários a cumprir as suas obrigações.
Embora legitimando a intervenção supletiva do poder público, as obrigações decorrentes da "função social da propriedade" devem recair, em princípio, sobre os próprios proprietários, cabendo aos poderes públicos fazê-las cumprir -, e é tempo de o fazerem!
sexta-feira, 4 de abril de 2025
Free & fair trade (22): USexit
1. Com a substancial subida unilateral generalizada das tarifas de importação, ontem anunciada por Trump, violando flagrantemente as suas obrigações perante a OMC e perante os parceiros comerciais com quem tem acordos preferenciais, como o Canadá e o México (aliás assinados pelo próprio Trump no seu 1º mandato), os EUA fazem uma declaração de guerra ao sistema económico internacional, com inevitáveis reflexos na situação económica de muitos países.
É evidente que, sendo impostos sobre as importações, o aumento das tarifas vai, antes de mais, afetar os consumidores e a própria economia norte-americana, por causa da subida dos preços dos produtos importados. Mas, uma vez que o mercado norte-americano é destino importante para as exportações de muitos países, esta subida dos preços dos produtos atingidos vai reduzir a sua importação e afetar a economia dos países exportadores. Além disso, o protecionismo de Washington pode levar grandes empresas estrangeiras a mudar a sua produção para os Estados Unidos (objetivo declarado de Trump), reduzindo o investimento e a criação de emprego nos respetivos países.
Com este ataque selvagem, em nome da "independência económica", os EUA saem efetivamente do sistema internacional de comércio regulado que ajudaram a edificar, desde o GATT (Acordo Geral de Taxas Aduaneiras e de Comércio) de 1947, e depois a profundar, desde a criação da Organização Mundial de Comércio (OMC), em 1995. É o fim inesperado de uma era de progressiva liberalização das trocas internacionais e da prosperidade que ela trouxe aos países que nela se empenharam.
2. Embora não podendo responder na mesma moeda, as demais potências comerciais vítimas deste ataque desleal de Washington, a começar pela UE, não podem deixar de retaliar seletivamente contra as importações norte-americanas, lá onde pode doer mais (incluindo a tributação de serviços tecnológicos, maciçamente importados dos EUA) e onde afete menos as empresas e os consumidores europeus. Ataques desleais destes não podem ficar impunes.
Porém, acima de tudo, a UE deve aproveitar esta saída dos EUA do sistema de comércio mundial, para se assumir como líder do sistema comercial internacional regulado sob a égide da OMC (por sinal, sediada na Europa) e para avançar na busca de novos parcerias comerciais por esse mundo fora, começando pela ratificação de acordos comerciais já concluídos (nomeadamente com o Mercosul) e na conclusão de outros com grandes economias dinâmicas, como a Índia e a Indonésia.
Como única grande potência comercial confiável e fiel ao mandato da OMC, só a UE pode preencher o vazio deixado pelo lamentável exit de cena dos EUA.
quinta-feira, 3 de abril de 2025
Manifesto dos 50 pela Reforma da Justiça (10): Eis o livro!
quarta-feira, 2 de abril de 2025
Entre os melhores (1): Liberdade de imprensa
Este mapa sobre a liberdade de imprensa nos Estados-membros da UE, com a chancela da prestigiosa organização de jornalistas Repórteres sem Fronteiras, coloca Portugal no pelotão da frente, melhor do que todos os demais países do sul da Europa e muito melhor do que os do leste, só sendo superado por alguns países no norte, com os escandinavos no topo, como sempre.
domingo, 30 de março de 2025
O que o Presidente não deve fazer (55): A cumplicidade do silêncio
1. Se há uma marca do atual Presidente da República que vai ficar para a posteridade, é a de "Presidente-falante", tão nutrida tem sido sido a torrente das suas intervenções públicas, muitas delas de puro comentário político - papel que, porém, não integra as funções presidenciais -, em manifesto contraste com os seus antecessores, que nesse aspeto deixaram um registo geral entre a contida moderação (como Soares e Sampaio) e o austero recato (como Eanes e Cavaco Silva), o qual, a meu ver, é bastante mais conforme com o perfil constitucional de "poder neutro" e de "garante das instituições" do inquilino de Belém, como tenho defendido nos artigos desta série.
Há, todavia, situações em que a palavra presidencial se impõe, nomeadamente quando está em causa a infração pelo Governo das suas obrigações de conduta institucional, que não podem ser deixadas em silêncio pelo PR, sob pena de cumplicidade, por falha na sua missão constitucional de supervisão do funcionamento regular das instituições. Nessas situações, a loquacidade habitual de MRS torna esse silêncio ainda mais gritante.
2. Tal é o que sucede com o surpreendente silêncio presidencial sobre a notícia de que o Governo, demitido já há duas semanas, apresentou publicamente na sexta-feira passada, dia 28, às câmaras municipais de ambas as margens do Tejo em Lisboa um grandioso e pormenorizado projeto de investimento público de infraestruturas e de habitação, pomposamente chamado "Parque Cidades do Tejo", incluindo o investimento estimado para cada capítulo, no valor total de muitos milhares de milhões de euros.
Não está em causa aqui, obviamente, a crítica política do megalómano projeto de investimento público para a capital do País - que inclui uma nova travessia do rio, subaquática - , em violação clara da obrigação constitucional de «promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional» (citando o art. 9º da CRP, sobre as "tarefas fundamentais do Estado"), confirmando o Governo Montenegro como Governo de Lisboa, e não do País, que deixa umas migalhas para a "província", sacrificando ostensivamente a "coesão territorial" (outro conceito constitucional, como se pode ler no art. 81º da CRP).
Mas essa crítica política da ação governamental deve ser evidentemente assumida pela oposição, e não diretamente pelo PR, apesar da sua prática corrente de comentador político.
3. O que é manifestamente do pelouro do PR é a ostensiva violação pelo Governo, com a referida iniciativa, de dois limites constitucionais claros, a saber: (i) a restrição de poderes dos governos demitidos, que só podem praticar os «atos estritamente necessários» à gestão dos negócios públicos (art. 186º, nº 5, da CRP) e (ii) a imparcialidade política das entidades públicas - incluindo, portanto, o Governo - na pendência de atos eleitorais (art. 113º da CRP).
Ora, não se vê porque é que aquele megaprojeto tinha de ser anunciado agora aos beneficiários e não podia esperar pelo novo Governo saído das eleições - até porque não pode avançar na sua concretização -, salvo obviamente para favorecer as candidaturas da AD nas eleições parlamentares de maio e nas eleições autárquicas do outono. Claro abuso de poder, portanto.
Que o Governo de Montenegro não tenha escrúpulos em sede de moral política, já nos vamos habituando, mas o PR não pode ser conivente com ele, quando está em causa também uma dupla violação das obrigações institucionais daquele -, o que, de resto, não é a primeira vez que denuncio. Por isso, MRS deve interromper o silêncio que se impôs como "comentador político", por causa das eleições, justamente porque há uma situação que reclama a sua intervenção a outro título bem mais importante, como garante do regular funcionamento das instituições.
sábado, 29 de março de 2025
Sistema eleitoral (11): Reforma inviável
1. Embora concordando com algumas das "propostas modestas" de reforma do sistema político, apresentadas por António Barreto no seu artigo de hoje no Público, discordo inteiramente da principal delas, que não é nada modesta, e que consiste em abandonar o atual sistema eleitoral parlamentar, pelo qual os deputados são eleitos em círculos plurinominais, proporcionalmente aos votos das respetivas listas, substituindo-o por um sistema eleitoral, inspirado no caso francês, em que eles passariam a ser eleitos individualmente em círculos uninominais (tantos quantos os deputados a eleger), por maioria absoluta, se necessário com uma segunda volta.
A primeira objeção é a de que se trata de uma proposta qualificadamente inconstitucional, pois a CRP não só estatui obrigatoriamente a eleição por sistema proporcional, como inclui esse princípio entre as "cláusulas pétreas", insuscetíveis de revisão constitucional (CRP, art. 288º). Ora, um dos requisitos elementares para a admissibilidade de qualquer reforma política numa democracia constitucional é o de ela ter cabimento na Lei Fundamental. Mas, neste caso, esta proposta afronta flagrantemente a Constituição.
2. Também a considero politicamente inviável, por várias razões.
sexta-feira, 28 de março de 2025
Eleições presidenciais 2026 (13): Programas de Governo de candidatos presidenciais?
1. Compartilho da opinião do candidato presidencial Marques Mendes, quando este rejeita a advertência de Marcelo Rebelo de Sousa de que os candidatos e protocandidatos presidenciais se deviam abster de intervir publicamente durante a campanha eleitoral para as próximas eleições parlamentares, para não confundir as pessoas.
Na verdade, trata-se de duas eleições em tudo diferentes, a começar pela lógica política de cada uma delas. As eleições parlamentares visam o debate e a opção por programas e candidatos partidários ao governo do País, através das competentes medidas políticas e legislativas, incluindo a política europeia (UE) e a política internacional. Como é próprio das democracais parlamentares, nestas eleições os cidadãos votam em duas coisas ("2 em 1"): na composição da assembleia representativa e num programa e partido para o governo do País. Ao contrário, nas eleições presidenciais vota-se na personalidade mais apta para representar a República, interna e externamente, e para supervisionar o sistema de governo, assegurando «o regular funcionamento das instituições», como diz a Constituição, independentemennte de quem for Governo. Ao contrário do que sucede nos regimes presidencialistas (como nos EUA) e semipresidencialistas propriamente ditos (como na França), nas eleições presidenciais em Portugal os eleitores não são chamados a fazer opções de governo.
É por isso que entre nós, diferentemente do que sucede naqueles regimes, os candidatos presidenciais não são apresentados por partidos e que os partidos podem prescindir de apoiar qualquer candidato (como foi o caso do PS desde há várias eleições) ou até podem apoiar candidatos oriundos de fora da sua área política (como foi o caso do PSD em 1991, apoiando Soares), e que os cidadãos não se sentem vinculados a nenhuma fidelidade partidária no seu voto, em relação ao candidato apoiado pelo seu partido.
Por conseguinte, em princípio, nada impede que um candidato presidencial fale publicamente da sua candidatura na pendência de uma eleição parlamentar.
2. No entanto, tal não é assim, quando se tratar de declarações públicas que, pelo seu objeto, não forem feitas nesse registo de candidatura presidencial, mas sim num registo de programa de governo, competindo, portanto, com o discurso dos partidos políticos na disputa parlamentar. Tal é o caso, porém, do longo artigo hoje publicado no semanário Sol Nascente pelo almirante Gouveia e Melo, cuja candidatura presidencial só falta ser oficialmente apresentada, e que por isso não pode intervir como se fora ainda um comum cidadão.
A intenção do autor de intervir pessoalmente no debate das eleições parlamentares não deixa, aliás, dúvidas desde o princípio do artigo, que começa assim: «Nas próximas eleições legislativas, os temas centrais que me parecem relevantes, e que suponho para a maioria dos portugueses, são: prosperidade – preços, habitação, salários baixos; equidade – justiça, educação e saúde para todos, desigualdades sociais, imigração; segurança – ameaças internas e externas; e liberdade – crescimento da intolerância». E segue-se depois um longo programa de ação política, desde a esfera internacional ao ambiente, onde não falta nenhum tema atual, como a defesa, a economia ou a habitação, e onde abundam noções típicas dos programas de governo, como "plano de ação", "apostar", "desafio", etc.
Ora, numa campanha eleitoral para as eleições parlamentares, não é pelo menos apropriado ver quase-candidatos presidenciais a apresentar programas de governo, em disputa com os partidos, como se fossem candidatos a Primeiro-Ministro.
3. Obviamente, não contesto aos candidatos presidenciais o direito de tornarem conhecida a sua visão do País e a sua perspetiva para o seu futuro, bem como os valores que vão orientar a sua ação pública como supremos magistrados da República, na defesa e promoção dos grandes princípios constitucionais: dignidade humana, liberdade, igualdade e solidariedade; democracia liberal, Estado de direito e descentralização territorial; Estado social, desenvolvimento sustentável e economia social de mercado; integração europeia, comunidade lusófona e ordem internacional sujeita a regras, etc.
Mas é evidente que não é disso que trata o texto em causa, que deliberadamente expõe programadamente os objetivos de governação para o País, para «não termos de ser pobres», como diz o seu título. Sem nenhuma dúvida o digo: isso é matéria para os Governos, não para o PR.
O que penso que os cidadãos querem dos candidatos presidenciais não é saber o que fariam se fossem Governo, mas sim como vão exercer os seus poderes constitucionais, sobretudo os mais intrusivos na esfera da AR e do Governo - como o veto legislativo, a dissolução parlamentar, o uso da palavra presidencial -, e à luz de que valores. Convém que os candidatos sejam tão claros quanto possível a esse respeito.
quinta-feira, 27 de março de 2025
História constitucional (12): Quem fez a Constituição de 1976?
1. Quando se celebram em breve os 50 anos da Assembleia Constituinte de 1975-76, importa revisitar esta obra, Os Constituintes, coordenada por Ivo Veiga, Mª Fernanda Rolo e Paula Borges Santos, publicada em 2021 pela editora da AR, sobre os deputados constituintes (entre os quais me conto), a qual, além de uma ficha biográfica para cada um deles, antes e depois da Constituinte, inclui um extenso estudo sobre eles e o seu trabalho na preparação da Constituição.
Trata-se de um estudo original e meritório sobre a composição social da Constituinte, nos seus vários aspetos (faltando, porém, a estatística dos deputados que tinham tido atividade na oposição democrática à Ditadura, que iam desde o PCP ao PPD), sobre as principais ideias que ocuparam os debates, sobre as pressões políticas externas a que estiveram expostos, sobretudo no período mais "quente" da Revolução, e sobre o modo como foram vistos pela imprensa ao longo do tempo, a propósito de alguns episódios avulsos do labor constituinte.
Além do seu valor como obra de sociologia política e eleitoral, ela é de inestimável valia para a história da CRP de 1976, nas vésperas de alcançar meio século de vida -, um enorme record entre as constituições de origem democrática entre nós.
2. É certo que nem tudo merece aplauso nesta obra, como, por exemplo, a adoção da designação incorreta de "Constituição Política" (o adjetivo foi propositadamente afastado do nome da Lei Fundamental pelos constituintes), a bizarra tese de que o sistema eleitoral proporcional adotado «favorecia o sistema maioritário», a infundada tese de que a «restrição» do voto dos emigrantes (que nunca tinham tido direito de voto na nossa história eleitoral) visou condicionar a composição política da Constituinte, ou a ausência do destaque devido à ampla representatividade popular da Constituinte, quando os números fornecidos mostram a presença de 44 trabalhadores agrícolas e industriais (a maior parte no PCP e no PS), fenómeno único na história da nossa representação parlamentar.
Entre as lacunas, nota-se a falta da composição e da direção dos grupos parlamentares e das comissões parlamentares, onde decorreu a maior parte do debate na especialidade dos projetos constitucionais.
Todavia, embora devessem ter sido evitados, estes poucos lapsos e omissões não desvalorizam o contributo desta investigação para sublinhar o enorme avanço democrático da Constituinte de 1975-76, quanto à sua eleição, à sua composição social e política e à riqueza do debate nela travado, em relação às três anteriores assembleias constituintes nacionais.
terça-feira, 25 de março de 2025
Eleições parlamentares 2025 (5): Poluição política visual (bis)
Regressando ao cartaz eleitoral do Chega contra o líder do PSD, que critiquei no post anterior, penso que ele não teria a visibilidade e o impacto que tem, se não houvesse a estranha condescendência entre nós em matéria de propaganda política fixa em tudo quanto é espaço público (praças e rotundas, bermas de estrada e passeios, pontes e viadutos, etc.), como se a liberdade de propaganda eleitoral fosse absoluta e houvesse o direito de ocupação selvagem do domínio público, que lamentavelmente tem sido "validado" pela CNE, transformada em "cartel dos partidos" contra o interesse público.
Ora, além de não ter base jurídica, a invasão do espaço público pela propaganda política não infringe somente a proibição de ocupação privativa duradoura do domínio público de fruição comum, mas também viola o princípio da igualdade de propaganda política, favorecendo obviamente os partidos com mais recursos e com menos escrúpulos cívicos e ambientais.
Mais uma vez, penso que é chegada a altura de confinar a propaganda política fixa aos espaços dedicados que os municípios estão legalmente obrigados a disponibilizar, libertando as cidades e vias de comunicação da miserável poluição visual do espaço público de que somos vítimas, sobretudo em períodos eleitorais (mas não só), sem paralelo em nenhum país civilizado.
Eleições parlamentares 2025 (4): Poluição política
1. Compreendo o protesto do líder do PSD, de que compartilho, contra o cartaz do Chega, profusamente espalhado por todo o País, que o associa diretamente a corrupção, ao lado de Sócrates (que, aliás, ainda não foi julgado e condenado por tal acusação). Penso que há limites para o combate político, mesmo em contexto eleitoral.
No entanto, julgo que é tanto ou mais condenável, que a acusação do Chega contra dois primeiros-ministros seja associada a «50 anos de corrupção», ou seja, identificando-a explicitamente com todo o regime democrático, como se a ditadura do "Estado Novo" tivesse sido imune - contra tudo o que sabemos - e como se a democracia liberal, com a liberdade de imprensa, o escrutínio político pluripartidário e as obrigações legais de transparência e de conflitos de interesse, não oferecesse melhores condições para combater a corrupção, cuja perceção, aliás, excede em muito a realidade, tendo em conta o escasso número de condenações, apesar do empenho do Ministério Público na sua investigação.
Por isso, ao contrário do que vejo por aí, o cartaz do Chega, em que este revela ostensivamente a sua hostilidade ao regime democrático não deveria ser condenado somente pelo político diretamente visado, mas também por todos os partidos e observadores democráticos.
2. Politicamente, creio que o cartaz não traz mais votos ao partido de Ventura, e que, pelo contrário, só favorece o PSD, e não é somente por permitir a Montenegro apresentar-se como vítima de "golpes baixos".
Por um lado, ao condenar o regime democrático e ao recorrer a ataques pessoais de baixo quilate, como este, o Chega só pode consolidar o voto da pequena minoria da extrema-direita radical-populista, mas afastando o voto de direita civilizada que entende que o combate político não admite tudo. Por outro lado, ao atacar desta forma o líder do PSD, o Chega retira credibilidade a qualquer hipótese de aliança política entre os dois partidos, com que também algumas personalidades do PSD têm "flirtado", pois, depois desta provocação, é impossível o recuo da opção "não-é-não" de Montenegro, adotada nas eleições do ano passado.
Ou seja, com este cartaz, Ventura contribui para reduzir o seu eleitorado a um voto de protesto antissistémico, fora de qualquer equação de governo - o que é bom!
3. Quanto ao modo de reagir a estes ataques políticos, sou, desde há muito, contra o recurso à via judicial, porque, além de isso dar maior visibilidade ao ataque, não vejo nenhuma vantagem nem na judicialização do combate político (desde logo, pela demora do processo judicial), nem na politização da justiça (pois dificilmente uma decisão judicial deixaria de ser acusada de parcialidade política, qualquer que fosse).
Defendo, por isso, que a reação deve manter-se no espaço político, sem afastar, porém, a queixa à Comissão Nacional de Eleições, onde todos os partidos parlamentares estão representados, como órgão legalmente encarregado de velar pela lisura do combate eleitoral.
[Eliminado o primitivo nº 4, que vai ser publicado autonomamente]
segunda-feira, 24 de março de 2025
Eleições parlamentares 2025 (3): O valor da estabilidade política
Face ao péssimo resultado do PS (~15%) nas eleições regionais da Madeira - causadas pela demissão do Governo do PSD por efeito de uma moção de censura apresentada pelo Chega e apoiada por toda a oposição no parlamento regional, incluindo o PS madeirense -, o líder nacional do PS, Pedro Nuno Santos, veio compreensivelmente dizer que «não pode ser feita uma relação com a política nacional», ou seja, com as próximas eleições nacionais, decorrentes da demissão do Governo de Montenegro.
Há evidentemente duas diferenças importantes: (i) o PS / Madeira nunca ganhou as eleições nem esteve perto disso, enquanto a nível nacional o PS é, por via de regra, candidato a ganhá-las; (ii) na Madeira o PS regional ajudou ativamente a derrubar o Governo regional, votando uma moção de censura do Chega (!), enquanto que na AR o PS se recusou a apoiar as moções de censura do Chega e do PCP, e o Governo caiu porque se fez deliberadamente demitir através da apresentação de uma moção de confiança, que o PS não se eximiu a rejeitar (como eu aqui defendi).
No entanto, eu duvido que muitos eleitores façam essa distinção ou que ela lhes importe muito, e receio bem que o mesmo silogismo político que resultou na Madeira tenha também algum eco nas eleições nacionais, a saber: demitir um Governo a quem as coisas correm globalmente bem (como era o caso no Funchal e em Lisboa) pode gerar o seu reforço eleitoral e uma sanção política às oposições, em nome da estabilidade política. Não é obviamente uma relação mecânica, mas faz algum sentido.
domingo, 23 de março de 2025
Memórias acidentais (26): O fascínio das imagens
Nesta foto, suponho que de 1986, apareço ao lado de Mário Soares, então no início do seu primeiro mandato presidencial, que observa uma foto minha, exposta nos 7ºs Encontros de Fotografia de Coimbra, que, sob a direção de Albano da Silva Pereira, marcaram durante anos a agenda fotográfica nacional, com grandes exposições de fotógrafos nacionais e estrangeiros de topo.
Tendo chegado tarde ao interesse pela imagem fotográfica, não demorei, porém, muito tempo a apaixonar-me pela arte, que estudei a fundo, quer na sua estética quer na sua história. Pouco depois tinha o meu próprio laboratório instalado em casa e fui acumulando muitas dezenas de álbuns de negativos e de caixas de diapositivos, bem como colecionando livros de história da fotografia e câmaras antigas, da marca que eu usava nessa altura (Contax, entretanto descontinuada).
Os anos passaram. As câmaras digitais revolucionaram a técnica. A minha disponibilidade reduziu-se. O laboratório, doei-o há anos a uma associação fotográfica. Todavia, embora de modo bem menos intenso do que há quatro décadas, a fotografia, especialmente de paisagem rural e urbana, continua a ser o meu hobby principal. Gostei de reviver esta foto e o que ela representou para mim.
"Old loves die hard" [velhas paixões custam a morrer].
sexta-feira, 21 de março de 2025
Eleições parlamentares 2025 (2): Abuso de poder do Governo demitido
1. Esta notícia de que o Ministério da Saúde vai dar andamento ao processo de criação de PPP de gestão de vários hospitais públicos é uma descarada violação dos limites constitucionais de um "Governo de gestão", que não pode praticar senão os «atos estritamente necessários par assegurar a gestão dos negócios públicos».
Ora, primeiramente, não se vê como é que o lançamento de tais PPP seja "estritamente necessária". Se o Governo demitido nem sequer pode mudar a gestão dos hospitais em causa, como é que pode entregá-los à gestão privada? Em segundo lugar, a razão por que um Governo demitido não pode precipitar-se em implementar medidas políticas dessa natureza está no facto de o Governo seguinte (e, antes dele, os eleitores) poder não concordar com a solução e não dever ser confrontado com factos consumados.
Além da patententemente ilegal, esta decisão da Ministra da Saúde, seguramente com cobertura do PM, revela uma óbvia falta de "chá democrático" - o que não surpreende, vinda de onde vem...
2. Pior do que essa medida específica, uma visita ao site do Governo desde a demissão mostra que o PM e os seus ministros continuam a tomar numerosas medidas, cuja «necessidade estrita» é patentemente inexistente, com a agravante de que se trata de distribuição de dinheiro público em investimentos e em subsídios a esmo. Aliás, o Governo mantém ou até aumentou a sua agenda pública de cerimónias, anúncios e inaugurações, como se estivesse em plenitude de funções.
Ou seja, apesar de estar demitido e de já estarem marcadas as eleições parlamentares, em que ele vai ser sujeito ao julgamento dos cidadãos, o Governo converteu-se, sem qualquer escrúpulo político, em pura máquina propaganda eleitoral a favor do PSD, paga por dinheiro público, em flagrante violação do princípio constitucional da imparcialidade eleitoral das entidades públicas.
Indepedentemente da impugnação contenciosa daquelas decisões, por excesso de poder - que o Ministério Público deveria levar a sério, cumprindo a sua obrigação constitucional de defesa da legalidade democrática -, cabe perguntar se os demais partidos parlamentares e o PR vão assistir silenciosos a esse reiterado abuso governamental.
quinta-feira, 20 de março de 2025
Contra a barbárie tauromáquica (17): Até o México já proíbe!
O meu aplauso para esta importante medida legislativa do parlamento da cidade do México (território federado daquele Estado), proibindo as touradas com sangue, passando o espetáculo a não ter bandarilhas nem espadas e, portanto, respeitando a integridade física do animal, que passa a ser apenas a ser "ator" no espetáculo, regressando incólume à sua ganaderia.
Esta medida é tanto mais importante quanto é certo que o México é o país da América latina que mais acolheu a herança espanhola da tauromaquia. Se os demais estados mexicanos seguirem o exemplo da capital, a barbárie tauromáquica perde um dos seus maiores apoios, e a civiliização vai-se libertando deste flagelo.
E em Portugal, quando é que nos vamos libertar do pequeno (mas, pelos vistos, poderoso) lobby tauromáquico e desse espetáculo degradante de tortura animal para gáudio público, que envergonha o País?