1. No seu último parecer sobre as perspetivas económicas e financeiras, já depois da nomeação do novo Governo, o Conselho de Finanças Públicas instava o Governo a apresentar no novo Programa de Estabilidade, que está obrigado a apresentar pelos normas da UE, «as contas [das novas políticas que pretende implementar] e anuncie o impacto orçamental de medidas como a recuperação do tempo de serviço dos professores, a valorização das forças de segurança e as descidas de impostos».
Ora, no Programa de Estabilidade hoje apresentado na AR, o Governo ignora totalmente essa recomendação do CFP e apresenta as perspetivas económicas e orçamentais em termos de "políticas invariantes", ou seja, sem o impacto das novas políticas que se comprometeu a seguir, quer quanto a nova despesa, quer quanto à redução das receitas fiscais. Por isso, o CFP entendeu não dar parecer sobre o documento.Causa Nossa
Blogue fundado em 22 de Novembro de 2003 por Ana Gomes, Jorge Wemans, Luís Filipe Borges, Luís Nazaré, Luís Osório, Maria Manuel Leitão Marques, Vicente Jorge Silva e Vital Moreira
segunda-feira, 15 de abril de 2024
Assim não vale (9): Um "programa de estabilidade" politicamente "ajeitado"
domingo, 14 de abril de 2024
Sistema eleitoral (9): A "ignóbil porcaria" de 1901
1. Não percebi o argumento de Rui Tavares no suplemento do Expresso desta semana sobre a reforma eleitoral de 1901 (Hintze Ribeiro), que veria a ser injustamente designada como "ignóbil porcaria", e sobre uma alegada afinidade política com o que se passa atualmente em Portugal.
Segundo o autor, a referida lei eleitoral teria visado salvaguardar o tradicional bipartidarismo e o rotativismo cartista, entre "regeneradores" e "históricos"/"progressistas" e dificultar o aparecimento de novos partidos. É certo que a divisão dos centros urbanos, designadamente Lisboa e Porto, em círculos eleitorais separados, agregados a zonas rurais adjacentes, conseguiu afastar os republicanos do parlamento seguinte. Mas o novo sistema eleitoral, ao aumentar o número de deputados e ao substituir os círculos uninominais por círculos plurinominais com representação de minorias, só poderia ter resultados contrários aos assinalados pelo autor, facilitando a representação parlamentar de mais partidos, incluindo os republicanos, como se veio a verificar nas eleições seguintes, até ao fim da monarquia. As supostas intenções da “ignóbil porcaria” viram-se completamente frustradas.
Argumento improcedente, portanto.
2. Também não vejo que relação tem a situação de 1901 com a atual, aliás pouco esclarecida pelo autor.
Primeiro, não houve nenhuma alteração recente da lei eleitoral, nem se perspetiva nenhuma. Segundo, a combinação do sistema proporcional com círculos eleitorais muito grandes, com um limiar de eleição muito baixo (menos de 2% em Lisboa), só pode levar a uma elevada fragmentação parlamentar, como se está a verificar nas últimas eleições, sem que os dois grandes partidos do rotativismo governativo democrático tenham defendido ou apresentado qualquer proposta para contrariar esse tendência (salvo a tradicional proposta do PSD de diminuição do número de deputados, que no entanto tem tido sempre a oposição do PS).
Paralelismo sem fundamento, portanto.
sábado, 13 de abril de 2024
Um pouco mais de jornalismo sff (31): A inventona governamental da descida do IRS
1. Saúde-se o pedido público de desculpas do Expresso aos leitores, denunciando em termos fortes, como se impunha, a falsificação governamental sobre a valor da baixa do IRS, que afinal é menos de 200 milhões, em vez dos 1500 milhões de que o Governo falou em pleno debate parlamentar, apropriando-se, sem escrúpulos, da baixa efetuada pelo anterior Governo e já em vigor (na campanha eleitoral a AD prometera 3 500 milhões!...).
Todavia, não se entende como é que o semanário não se deu conta de que a medida anunciada na AR, tendo em conta os descontos previstos e os escalões abrangidos, não podia atingir aquele montante. A rotunda fake news do Governo é imperdoável, mas a falta de verificação pelo periódico também é censurável.
2. Também não andou bem o Público de hoje, que, já depois de descoberta a falsidade do anúncio dos 1 500 milhões na AR, coloca em título da notícia que «descida de 1500 milhões no IRS afinal só traz alívio adicional de 200 milhões», misturando alhos com bugalhos, só esclarecendo no corpo da peça o caso da apropriação da descida efetuada pelo PS no orçamento em vigor e de que, portanto, os contribuintes já estão a beneficiar no IRS cobrado este ano. Por conseguinte, o título correto seria: «Afinal, Governo só alivia o IRS em 200 milhões, e não em 1500, como anunciado na AR».
Como tenho escrito muitas vezes, o diabo está nos títulos, que é o que a maior parte das pessoas leem.
sexta-feira, 12 de abril de 2024
Contra a corrente (8): Benesses por atacado
1. Depois de o próprio líder socialista se ter adiantado a propor ao Governo um acordo sobre o aumento imediato das remunerações de várias categorias profissionais do Estado (professores, polícias, militares, etc.), também tenho poucas dúvidas de que o PS vai igualmente aprovar a nova baixa do IRS, embora reduzida, anunciada por Montenegro (poucos meses depois da entrada em vigor da redução do mesmos imposto decidida pelo anterior Governo socialista).
Todavia, duvido que tais medidas de aumento substancial da despesa pública e de redução da receita fiscal fossem tomadas por um Governo PS, por receio de que viessem a exigir a redução da despesa social (saúde, educação, proteção social, habitação, etc.), que sustenta o Estado social, ou a pôr em causa o saldo as contas públicas e a necessária redução do peso da dívida pública.
Também aqui, não se pode ter sol na eira e chuva no nabal.
2. É certo que que, como mostrou há dias o Conselho das Finanças Públicas, confirmando as previsões do anterior Governo, são muito positivas as perspetivas económicas e financeiras herdadas pelo novo Governo - como nenhum outro, há muitos anos -, e o aumento do rendimento disponível que aquelas medidas implicam pode mesmo estimular o crescimento económico previsto, por aumento da procura interna.
Todavia, além de se traduzirem num política pró-cíclica, que pode pressionar a inflação, trata-se de medidas politicamente irreversíveis, com impacto significativo permanente no aumento da despesa e na redução da receita pública, que dificilmente podem considerar-se prudentes num País com o elevado nível de dívida pública (e do seu custo) e de despesa social, como é o caso de Portugal.
quinta-feira, 11 de abril de 2024
Às avessas (7): Um proposta descabida
1. Uma das medidas mais estranhas previstas no programa do novo Governo, na área da justiça, consiste em questionar a atual separação entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos e fiscais, promovendo «um estudo e um debate sobre as vantagens e desvantagens» da sua unificação (ponto 6.2.1.).
Ora, salvo uma ou outra contestação isolada, não existe nenhum movimento nesse sentido entre os operadores judiciários desde o início do atual regime democrático. O dualismo jurisdicional é tradicional em Portugal e nos demais países de influência francesa. Está consagrado na Constituição, pelo que não poderia ser afastado sem revisão desta.
Pior do que não dar solução a problemas reais, é inventar soluções para problemas que não existem.
2. Em vez de pôr em causa a separação de jurisdições, o que se impõe é fazê-la valer onde ela tem sido indevidamente derrogada, retirando aos tribunais administrativos a competência para matérias que lhes deviam caber, como sucede, por exemplo, com os litígios relativos à defesa da concorrência e à regulação pública da economia, questões de natureza caracterizadamente jurídico-administrativa, que, segundo a Constituição, deviam ser da competência dos tribunais administrativos, mas cujo julgamento foi confiado a um tribunal especializado de âmbito nacional integrado na jurisdição comum, o Tribunal da Concorrência, da Regulação e da Supervisão.
Aqui, sim, justifica-se um estudo e um debate sobre as vantagens e desvantagens desta (e outras) inconsistência judicial.
quarta-feira, 10 de abril de 2024
Causa palestina (10): Uma boa notícia
Uma medida muito positiva do programa de Governo hoje apresentado na AR, na área da política externa, representando aliás uma inovação em relação ao programa eleitoral da AD (que era omisso nesse ponto), é a defesa da solução dos dois Estados para o conflito israelo-palestino, na base do «reconhecimento do direito à autodeterminação do povo palestiniano».
Saúde-se esse notável avanço de Portugal no sentido de uma justa saída para o sangrento conflito de décadas, desde a fundação do Estado de Israel, passo que o anterior Governo do PS não foi capaz de dar, apesar da posição firme nesse sentido desde há semanas anunciada pelo Governo socialista espanhol de Pedro Sánchez. Resta saber se esta prometedora inflexão política do novo MNE vai ser acompanhada de uma firme condenação da destruição sanguinária que Israel está a perpetrar em Gaza e da horrível crise humanitária que a acompanha.
O que outros pensam (6): A remuneração dos políticos
Concordo com este texto de A. Azevedo Alves, que propõe, com boas razões, a elevação da remuneração dos políticos. Nem sequer a 1ª medida de austeridade orçamental tomada por Sócrates em 2010, cortando 5% nas remunerações do setor público, foi revertida até agora no que respeita ao vencimento dos membros do Governo e outros titulares de cargos políticos, ao contrário de todas as outras!
Tantos anos depois, é altura de revisitar a questão, vencendo o complexo populista, à esquerda e à direita, que tem impedido os partidos de governo de equacionar o assunto, amenizando uma das barreiras que tornam o exercício de cargos políticos, sobretudo os executivos, tão pouco atraente para tanta gente.
Assim vai a política (18): Um jogada política com riscos
1. Compreende-se a carta do líder do PS ao chefe do Governo, reiterando um compromisso oral anterior, de apoiar a satisfação de reivindicações salariais de vários grupos profissionais da função pública, dos professores às polícias, algumas das quais o programa eleitoral do PS também contemplava.
Por um lado, com essa iniciativa, PNS adianta-se na exigência de medidas politicamente populares, que de outro modo seriam exploradas exclusivamente pelo Governo; por outro lado, ao exigir a sua negociação em dois meses, PNS pretende evitar que o Governo as remeta para o orçamento para 2025, jogando com elas como chantagem contra o PS na votação do orçamento, em relação ao qual este quer manter mãos livres.
Boa jogada de antecipação política, portanto.
2. Mas o risco político deste "jogada" do PS também é duplo: primeiro, ser acusado pelas demais oposições de uma operação oportunista que coloca entre parêntesis a sua reclamada liderança da oposição; e depois, ser usado pelo Governo como desculpa para a hipótese de o aumento da despesa pública que aquelas medidas importam ajudar a consumir o excedente orçamental previsto para este ano, retirando ao PS o argumento de laxismo orçamental do Governo.
Também na política, não há bela sem senão.
terça-feira, 9 de abril de 2024
Um pouco mais de jornalismo, sff (30): Pretenso purismo terminológico
1. Usando argumentos da direita na recente polémica dos logótipos governamentais, o editorial de hoje do Diário de Notícias defende que o Governo não devia usar a expressão "República Portuguesa", porque é somente o órgão executivo do Estado, e não a República.
Ora, tal como o demais "órgãos de soberania", também o Governo é órgão da República Portuguesa, que é o nome oficial do País. Desde logo, se o chefe do Estado se designa como Presidente da República e o parlamento como Assembleia da República, torna-se pertinente falar também em Governo da República, até para o distinguir dos governos regionais dos Açores e da Madeira.
Portanto, desde que dos documentos resulte evidente que se trata do Governo, como sempre sucede, este tem todo o direito de neles invocar a entidade política em nome da qual atua (tal como um governo regional invoca a respetiva Região, ou uma câmara municipal, o seu município). Acresce que é o Governo que conduz a política europeia e a política externa do País, pelo que faz todo o sentido assumir-se como governo da República Portuguesa nas suas relações com outros Estados e com as organizações transnacionais.
O que não faz sentido é, em documentos ou símbolos oficiais, usar "Portugal" em vez de "República Portuguesa".
2. Levando ao extremo o seu purismo político-terminológico, o autor entende também que «em lugar de chamar ao OE Orçamento do Estado, este dever-se-ia designar Orçamento do Governo, [pois] é este último quem decide onde aplicar o dinheiro (poder) que recebe... do Estado (povo)».
É difícil concentrar tanta confusão em tão poucas palavras. Antes de mais, a expressão "orçamento do Estado" é a designação constitucional (CRP, art. 105º) e está correta, pois o documento prevê as receitas e as despesas de todo o Estado, incluindo as que são privativas do PR, da AR e dos tribunais, e não somente do Governo e da Administração dele dependente. E não é o Governo que «decide onde aplicar o dinheiro», pois só lhe cabe elaborar a proposta de orçamento, cabendo a sua aprovação à AR (e a promulgação ao PR).
Em suma, como artigo de opinião, este texto não se recomenda; como editorial, é reprovável. Um jornal como o DN deveria assumir posições mais ponderadas nos seus editoriais, que não podem ser meras opiniões jornalísticas de responsabilidade individual, como outras.
Não dá para entender (38): Fusão doutrinária das direitas?
1. Não se compreende bem como é que um liberal assumido, como Passos Coelho, se dispõe a apresentar e, implicitamente, a patrocinar «um 'manifesto' contra “os adversários da família”, “a ideologia de género” e “a cultura de morte”», que é coletânea de textos de um conjunto de autores, que, embora com algumas exceções, representa doutrinariamente o que de mais radicalmente de direita antiliberal existe entre nós, combatendo todos os avanços das últimas décadas no sentido de alargar a liberdade individual, nomeadamente a emancipação feminina, a IVG, o casamento de pessoas do mesmo sexo, a morte assistida em condições-limite, etc.
A publicação de um "manifesto" destes é especialmente inquietante em cima das celebrações do cinquentenário do 25 de Abril, que abriu caminho, desde logo na Constituição de 1976 e na subsequente revisão do Código Civil, à desmontagem da conceção corporativa da família da Ditadura.
2. Que os autores dos textos defendam a suas ideias, individualmente ou organizadamente -, nada a objetar numa democracia liberal. Mas que elas recebam a cobertura política de um ex-líder e ex-primeiro-ministro do PSD - o atual partido no Governo -, isso é muito menos compreensível, comprometendo sem dúvida o partido onde continua a ter muitos adeptos e em cuja campanha eleitoral participou recentemente.
Será que, antecipando uma eventual união política, deixou de haver fronteira doutrinária entre a direita liberal e a direita retrógrada?
segunda-feira, 8 de abril de 2024
Assim não vale (9): Despudor político
domingo, 7 de abril de 2024
História constitucional (9): A cidadania política em Portugal
1. O livro De Súbditos a Cidadãos, organizado por José Domingues e por mim, e publicado em 2022 (como se assinalou AQUI) pelas edições da Universidade Lusíada, no âmbito dos comemorações do bicentenário da Revolução Liberal, acaba de ser publicado em versão inglesa na mesma editora (imagem acima) para permitir o acesso a um público, especialmente académico, mais vasto do que os falantes de português. Alguns dos textos foram revistos pelos seus autores para este reedição.
Beneficiária do financiamento da FCT, tal com a versão originária, também esta reedição inglesa se encontra disponível em acesso livre no site da UL.
2. Com origem num colóquio a várias vozes realizado no Porto em 2020, o livro traça as origens da moderna cidadania política entre nós, através da revolução política e constitucional do vintismo, e recorda o seu aprofundamento em dois outros importantes momentos constitucionais, a saber, o republicanismo e o atual regime democrático.
Nas vésperas da celebração do cinquentenário da Revolução do 25 de Abril de 1974, esta reedição assinala mais uma vez o legado que o vintismo e o republicanismo deixaram em matéria de cidadania política à Constituição de 1976.
sexta-feira, 5 de abril de 2024
Não dá para entender (37): Candidatos a fingir
Pelos vistos, há "independentes" com elevado prestígio académico e profissional, que aceitam dar o nome como candidatos em listas eleitorais, em lugares de destaque, obviamente para ajudar a atrair eleitores, mas que depois se permitem nem sequer assumir o mandato.
Depois, queixemo-nos do descrédito da política e da alienação dos eleitores. Os eleitores e as eleições merecem mais respeito...
quinta-feira, 4 de abril de 2024
Um pouco mais de jornalismo sff (29): Fazer eco dos "recados" governamentais
quarta-feira, 3 de abril de 2024
Maus augúrios (2): Um Governo desafiador, apesar de ultraminoritário
1. O discurso do novo PM na tomada de posse do Governo PSD+CDS só pode ser interpretado com uma deliberada provocação às oposições, e em especial ao PS, imputando-lhes uma obrigação de "deixar o Governo trabalhar" e a responsabilidade de assegurar a estabilidade política.
Ora, sendo o Governo ultraminoritário, é a ele que cabe promover os compromissos políticos necessários com os partidos de oposição, à esquerda ou à direita, para conseguir fazer aprovar a legislação, em geral, e o orçamento, em especial, sabendo, porém, à partida, que não pode pretender realizar integralmente o seu programa político, por falta de apoio eleitoral e parlamentar.
Numa democracia parlamentar, não é vocação das oposições, muito menos do principal partido de alternativa governativa, sustentar o Governo.
2. Conto-me entre os que defendem que o PS, como partido de governo que não deixou de ser, deve fazer uma oposição responsável, e não caprichosa, ponderada, e não sectária, aberta à negociação com o Governo, e só votando contra as medidas incompatíveis com o seu próprio programa político.
Todavia, para haver uma oposição responsável exige-se um Governo disponível para negociar e fazer concessões e para aceitar que todos os partidos têm "linhas vermelhas" políticas e doutrinárias que não podem sacrificar. Ora, a postura desafiadora de Montenegro não aponta para aí, mas sim para a chantagem sobre o PS e para a vitimização política pelas eventuais derrotas parlamentares que não conta evitar.
Perante este discurso, a impressão que fica é que Montenegro quer "encostar o PS à parede" e vai jogar tudo na demissão do Governo numa ocasião politicamente propícia, acusando os socialistas de "bloqueio" à ação governtiva. Maus augúrios, portanto, para o "clima" político e para a estabilidade governativa.
terça-feira, 2 de abril de 2024
Aplauso (39): O teste do algodão
Justifica-se plenamente esta iniciativa de António Costa, de pedir explicitamente ao MP junto do STJ para ser ouvido com toda a brevidade sobre a investigação a que está sujeito desde há quase cinco meses, sem, nesse longo período de tempo, ter sido sequer informado pessoalmente sobre que conduta delituosa versa a investigação e muito menos sem ter sido ouvido para prestar declarações sobre o assunto.
Agora como cidadão comum, que tem de decidir sobre a sua vida pessoal, profissional e política, o ex-PM tem um interesse mais do que legítimo em ver esclarecida a suspeita, tão depressa quanto possível, e não se vê que interesse pode ter o MP - salvo o de o manter indefinidamente como refém político - em conservar o silêncio inquisitorial que tem mantido sobre a tal (pseudo)investigação.Portucaliptal (32): Um bom exemplo
1. Durante décadas, sob pressão da indústria de celulose e do correspondente lobby florestal, assistimos à transformação do País num imenso eucaliptal, com enormes manchas territoriais de monocultura do eucalipto, por montes e vales, sem paralelo em qualquer outro país europeu.
Apesar dos seus óbvios impactos negativos - desfeiando a paisagem, favorecendo a erosão dos solos, afetando os recursos hídricos, reduzindo a biodiversidade, tornando a floresta mais vulnerável aos incêndios -, sucessivos governos de diversa orientação política não somente consentiram mas também incentivaram essa destruição da paisagem nacional.
Uma história politicamente deprimente!
2. Felizmente, nos últimos anos, por efeito da ação dos grupos ecologistas, foi-se quebrando o consenso nacional favorável ao eucalipto - largamente devido ao investimento maciço do setor na propaganda mediática e na "captura" política dos governos -, tendo crescido a consciência pública sobre os malefícios da eucaliptização extensiva.
Esta iniciativa de substituição do eucalipto por espécies autóctones do município de Albergaria-a-Velha - um dos muncípios do distrito de Averio mais atingidos por essa praga florestal - mostra essa nova sensibilidade cívica, até porque não é isolada. Embora, sendo iniciativas micro, elas merecem ser saudadas e divulgadas como exemplos a seguir por outros municípios.
A batalha contra o eucalipto só agora começa.
segunda-feira, 1 de abril de 2024
O que outros pensam (5): O domínio partidário no comentário político
«Chega-me falar de uma originalidade portuguesa: dois ex-líderes dos partidos que se juntaram numa mesma coligação têm o monopólio do comentário sem contraditório em canais abertos generalistas. Espaços que garantem, à partida e de longe, maior audiência. De tal forma poderosos que já ajudaram a eleger um Presidente (também ex-líder do PSD) e têm outro na calha para o mesmo projeto.
Não fazendo grande esforço para disfarçar a função política dos seus espaços exclusivos, Luís Marques Mendes e Paulo Portas não hesitaram em participar diretamente na campanha eleitoral das últimas eleições, saltando da cadeira de analistas para o palanque de comícios e, de novo, para a cadeira de analistas. Nada contra. Os comentadores não têm de ser neutros. Grave é que duas pessoas empenhadas na campanha da mesma força política tenham mantido este monopólio nas televisões portuguesas.»
[Daniel Oliveira, «Mendes e Portas serão as novas "conversas em família"?», no Expresso]
Estou de acordo, com eu mesmo anotei AQUI. A Lei da Televisão obriga as televisões a respeitarem o pluralismo político - que se impõe sobretudo às televisões de sinal aberto, protegidas por não haver liberdade de acesso a tal atividade -, o que não sucede manifestamente no caso da propaganda monopartidária travestida de comentário politico.
No cinquentenário do 25 de Abril (3): As conquistas da Revolução e os novos desafios
- o elevado gabarito dos conferencistas, todos especialistas reputados nos temas abordados, e a diferença entre as suas abordagens, que suscitaram interessantes questões da assistência;
Trata-se, portanto, de uma reflexão importante não somente sobre as mudanças trazidos pela Revolução, nos planos político, económico, social e cultural, mas também sobre os antigos e novos problemas que reclamam uma resposta ao regime democrático conquistado há cinquenta anos.
domingo, 31 de março de 2024
Não concordo (46): Dois erros na formação do Governo
1. Além da problemática nomeação de uma advogada para a pasta da Justiça nas atuais circunstâncias, como referi anteriormente, há mais dois aspetos em que discordo na composição do novo Governo.
O primeiro é a nomeação da Juíza-Conselheira Margarida Blasco para ministra da Administração Interna (ou qualquer outra pasta), porque, desde sempre (por exemplo, AQUI), considero que a nomeação de magistrados judiciais para cargos políticos sem prévio abandono da carreira judicial viola flagrantemente o princípio da separação de poderes e a independência partidária da magistratura (e não estou sozinho neste ponto). Apesar de já jubilada, tal estatuto (a que voltará depois de deixar o Governo) não representa abandono da carreira judicial, mantendo-se vinculada às incompatibilidades próprias da magistratura.
A meu ver, a "porta giratória" entre cargos judiciais e cargos políticos não é compatível com o princípio do Estado de direito.
2. O segundo aspeto negativo é o regresso dos assuntos europeus ao Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Como defendi anteriormente AQUI, o pelouro dos assuntos europeus - que compreende essencialmente a representação do Governo na formação de "assuntos gerais" do Conselho da União, e a articulação da representação ministerial nacional nas nove restantes formações especializadas do Conselho - tem a ver sobretudo com políticas internas, desde a economia ao ambiente, pelo que deveria continuar sob responsabilidade de um secretário de Estado, na presidência do Conselho de Ministros, ou seja, sob a égide e autoridade superior do Primeiro-Ministro, tal como no Governo cessante.
Além de injustificada, até porque o MNE sempre teria direito a integrar o conselho de ministros da política externa da UE, esta solução constitui, a meu ver, um retrocesso prejudicial à coordenação das políticas da UE com as correspondentes políticas internas, que são competência dos demais ministros sectoriais, e que deveria continuar sob responsabilidade do PM, e não de um ministro sectorial, como o MNE.
sábado, 30 de março de 2024
Causa palestina (9): Guerra de extermínio
O que se passa com a invasão de Gaza por Israel é um verdadeira guerra de extermínio populacional: destruição generalizada de infraestruturas e do parque habitacional, tornando o território inabitável, matança massiva e indiscriminada da população (mais de 35 000 mortos, sendo mais de metade mulheres e crianças, obviamente combatentes do Hamas...), expulsão massiva de populações dos seus lugares de residência, proibição de acesso da ajuda humanitária às zonas mais críticas, fome generalizada. Uma catástrofe humanitária.
Entretanto, as potências ocidentais (US e UE) não passam da crítica verbal, continuando a deixar mão-livre a Netanyahu na guerra de extermínio em que Israel está empenhada. O Tribunal Internacional de Justiça acaba de intimar Israel a não praticar atos de violação dos direitos do povo de Gaza ao abrigo da Convenção das Nações Unidas contra o Genocídio. Mas o que é que ocorre em Gaza senão uma clara tentativa de genocídio, em avançado estádio de execução?
sexta-feira, 29 de março de 2024
Corporativismo (57): Conflito de interesses no Governo
1. Uma das soluções problemáticas no novo Governo PSD&CDS é a nomeação de uma advogada como Ministra da Justiça, depois da recente guerra política movida pela Ordem dos Advogados contra a reforma das ordens profissionais (que instituiu a separação entre a sua função de representação e defesa de interesses profissionais e a sua função oficial de regulação e supervisão da profissão) e contra a redução do âmbito dos chamados "atos próprios" (ou seja, exclusivos) dos advogados.
A bastonária da OA apressou-se a felicitar a nomeação da sua associada e a exprimir a esperança de que a nova Ministra reverta as referidas reformas. A titular da pasta fica em maus lençóis: ou vai ao encontro dos interesses da sua corporação profissional, propondo ao parlamento a reversão da reforma e arriscando um litígio com a Comissão Europeia - que impôs tal reforma como condição do PRR -, ou resiste à pressão corporativa, arriscando um voto de desconfiança da sua classe.
Os conflitos de interesse geram estes dilemas.
2. Se o Governo optar pela 1ª via, revertendo a meritória reforma (apesar de moderada) da regulação pública das chamadas profissões liberais, teremos a estranha situação de ver um Governo de direita, supostamente mais liberal quanto ao papel do mercado, a reverter uma reforma assumidamente liberalizadora de um Governo de esquerda, por princípio menos liberal em termos económicos, e efetuada com a cobertura da UE e da OCDE.
O que está em causa é obviamente o conflito entre o protecionismo profissional, que as ordens atavicamente defendem, e um módico de concorrência na prestação de serviços profissionais, em prol dos interesses dos utentes, sobretudo dos clientes empresariais, numa economia cada vez mais "terceirizada" e cada vez mais aberta à concorrência externa, onde aqueles serviços profissionais assumem cada vez maior importância.
Para um Governo apostado em aumentar o crescimento económico, a escolha racional parece óbvia. Todavia, quando os interesses corporativos prevalecem, podem registar-se contradições entre a doutrina e a prática política.
O SNS em questão (28): A receita da privatização
Com o novo Governo PSD&CDS, é de esperar uma aposta numa maior privatização dos cuidados de saúde, pretextando o défice de resposta do SNS.
Por isso, vale a pena ler este recente estudo publicado na revista Lancet, que questiona as alegadas vantagens da privatização (agradecendo a Rosalvo Almeida a referência). Citando o sumário:
«(..) Com base nos dados disponíveis, a nossa análise apresenta provas que questionam as justificações para a privatização dos cuidados de saúde, concluindo que o fundamento científico para maior privatização dos serviços de saúde é fraco».
Infelizmente, a ineficiência do SNS entre nós e o argumento ideológico contra ele levam ao triunfo da opção privatizadora.
quarta-feira, 27 de março de 2024
Aplauso (38): O partido adulto na sala
1. Fez bem o PS em contribuir para desbloquear a comprometedora ameaça de crise institucional criada na AR pela imprudência do PSD, ao confiar ingenuamente no acordo com o Chega para assegurar a eleição do Presidente da AR, acordo que Ventura rompeu sem escrúpulos políticos (e já sem surpresa).
Mesmo que a legislatura não venha a ser cumprida, e o PS não chegue a exercer a sua parte na presidência da AR, fica sempre o óbvio significado político deste episódio: o PSD experimentou mais uma vez os custos do "namoro" sem rede com a direita radical, e o PS reforçou o seu estatuto de partido capaz de, sem deixar de protagonizar a oposição ao Governo, sacrificar os seus interesses políticos imediatos em prol do prestígio das instituições democráticas.
É bom saber que em casos de emergência institucional há "partidos adultos na sala", capazes dos compromissos necessários para os superar.
2. Para além de se inspirar numa prática do Parlamento Europeu em anteriores legislaturas, a repartição temporal da presidência do parlamento pelos dois principais partidos tem a seu favor neste caso a igualdade de deputados entre o PSD e o PS, e esta solução pode vir eventualmente a iniciar uma "convenção constitucional", pelo menos nos casos em que o partido vencedor das eleições, ou tido como tal, não tem uma maioria de deputados no seu campo político para eleger o Presidente da AR, ou não consegue ativá-la, como neste caso.
As regras de uma democracia constitucional não se resumem aos preceitos constitucionais, incluindo também as práticas instituídas que não sejam incompatíveis com aqueles.
No cinquentenário do 25 de Abril (2): Recordar o "antigo regime"
1. A um mês dos 50 anos da Revolução importa registar as principais manifestações e opiniões sobre o evento que mudou profundamente Portugal - para melhor!
Uma tarefa obrigatória consiste em lembrar o regime político caracterizamente antiliberal, antidemocrático e antiparlamentar a que a Revolução veio pôr fim e a degradante situação económica, social e cultural a que a maior parte dos portugueses estava sujeita, até porque não falta quem continue a louvá-lo.
Infelizmente, entre os saudosos não se contam aí somente os seus ideólogos e beneficiários e os herdeiros destes.
2. Julgo que podemos começar por este luminoso texto Fernanda Câncio de no Diário de Notícias de há pocuos dias, sobre as "Saudades da ditadura".
Um excerto:
«Não passamos a vida a louvar haver uma sólida rede de apoio estatal para permitir aos cidadãos enfrentar o desemprego, a doença, a velhice, a pobreza. Não nos passa pela cabeça lembrarmo-nos de que coisas como subsídio de desemprego, pensões para todos - mesmo para quem, por esta ou aquela razão, por responsabilidade própria ou azares da vida, não fez descontos - e subsídio de parentalidade são conquistas da democracia».
Há uma coisa que nem o tempo nem a contrainformação podem apagar: a opressão política, económica, social e cultural do chamado "Estado Novo".
História constitucional (8): Nos 200 anos da 1ª constituição brasileira
1. O Brasil comemora por estes dias o bicentenário da sua primeira Constituição (25 de março de 1824), menos de dois anos depois da independência (1822), por secessão do Reino Unido de Portugal e do Brasil, que tinha sido instituído por D. João VI, no Rio de Janeiro, em 1815.
Embora seja um facto em geral ignorado na histografia política e constitucional brasileira, a primeira constituição aplicada no Brasil foram as Bases da Constituição aprovadas pelas Cortes Constituintes de Lisboa em 1821, que foram imediatamente juradas e postas em vigor no reino do Brasil pelo regente D. Pedro, ainda antes de serem juradas, com efeito para todo o Reino Unido, por D. João VI no seu regresso a Lisboa. A declaração de independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822, impediu a entrada em vigor ,no outo lado do Atlântico, da Constituição de 1822, aprovada no final desse mês, que constitucionalizava o Reino Unido, embora em termos insatisfatórios para os brasileiros.
A intransigência dos constituintes portugueses contra a proposta de tipo federal do Brasil precipitou a separação, que, aliás, D. Pedro preparava desde há muito.
2. Ao contrário da Constituição portuguesa, aprovada em assembleia constituinte eleita ainda em 1820, a Constituição brasileira de 1824 foi preparada por um comité próximo do imperador e outorgada pelo próprio D. Pedro, depois de ter dissolvido em 1823 a assembleia constituinte que ele próprio tinha convocado no Rio de Janeiro em 1822, interrompendo autocraticamente o exercício de poder constituinte representativo.
Na verdade, sendo um produto do poder constituinte outorgado pelo imperador, na senda do constitucionalismo restauracionista francês da Carta Constitucional de 1814, a Constituição brasileira consagrava a preeminência do poder do imperador, o qual, além de compartilhar do poder legislativo com o parlamento, através da sanção legislativa, e de ser titular do poder exercutivo, nomeando e demitindo livremente o governo, era também titular de um novo poder próprio, o poder moderador, inspirado em Benjamin Constant, mas desviando-se do "poder neutral" deste, que era concebido como poder separado, e não cumulativo, dos demais poderes.
Tratava-se de formidável acumulação de poderes nas mãos do Imperador, em contraste com os reduzidos poderes régios na anterior Constituição portuguesa de 1822.
3. Sucede que dois anos depois, na qualidade de herdeiro do trono português, por falecimento de D. João VI, D. Pedro decidiu restaurar a monarquia constitucional em Portugal, interrompida com a contrarrevoluação de 1823 contra o vintismo constitucional, optando expeditamente pela outorga de uma Carta Constitucional a Portugal, que não passava de uma réplica, com pequenas alterações, do texto que dera ao Brasil dois anos antes.
Emitida também no Rio de Janeiro e remitida para Lisboa para ser jurada, a Carta Constitucional de 1826 teve inicialmente vida bem mais atribulada do que a sua homóloga brasileira, tendo a sua vigência sido interrompida duas vezes: primeiro pela usurpação miguelista (1828-34) e depois pelo constitucionalismo setembrista (1836-1842). Todavia, tendo a sua vigência sido consolidada com a Regeneração (1851) e a revisão constitucional de 1852, ela veio a vigorar até à proclamação da República (1910), tal como no Brasil a Constituição de 1824 veio a manter-se até à proclamação respetiva República, em 1889.
Ou seja, a Constituição brasileira de 1824 constitui a matriz de um longevo constitucionalismo comum luso-brasileiro, sendo essencial para compreender a nossa Carta Cosntitucional e fazendo, portanto, também parte integrante da história constitucional nacional.
terça-feira, 26 de março de 2024
Um pouco mais de jornalismo sff (29): Destino do excedente orçamental
1. É inquietante a confusão que vai na cabeça de vários jornalistas e comentadores que imaginam que o saldo orçamental do ano passado, no valor extraordinário de mais de 3 000 milhões de euros, pode ser utilizado no pagamento de despesa pública no corrente ano orçamental, nomeadamente nas prometidas benesses aos professores, polícias, etc.
Trata-se simplesmente de ignorar que o art. 21º da Lei do Enquadramento Orçamental estipula claramente o destino do excedente orçamental geral - para amortização da dívida pública - e do excedente da conta da segurança social - para reforço do respetivo Fundo de Estabilização Financeira -, o que exclui obviamente o pagamento de despesa pública, como, aliás, foi anteriormente assinalado pelo presidente da UTAO.
Um pouco mais de zelo profissional não fazia mal a ninguém.
2. A despesa pública do corrente ano tem de ser coberta com receita cobrada neste ano. Por conseguinte, o novo Governo só pode contar com a previsível folga orçamental resultante de maior receita do que a prevista, cortesia de um crescimento económico e de um emprego de valor superior superior aos valores estimados no orçamento, o que o BP já prevê efetivamente.
Parece, porém seguro que, mesmo sem nova despesa, o excedente orçamental deste ano, embora podendo ser previsivelmente maior do que o previsto no orçamento ("somente" 0,2%), não iria atingir seguramente o valor extraordinário do excedente de 2023.
segunda-feira, 25 de março de 2024
No cinquentenário do 25 de Abril (1): Uma Revolução a sério
1. Sendo uma das mais profundas revoluções da história política nacional, quanto à rutura com o regime precedente - só equiparável à Revolução liberal de 1820, que, porém, foi vencida pela contrarrevolução antivintista logo em 1823 -, a Revolução de 25 de Abril de 1974, iniciada por uma sublevação militar, logo transformada em intensa revolução popular, foi também a mais bem-sucedida na transformação do País, indo além do seu programa originário.
No campo político: fim do regime autoritário e do seu aparelho repressivo e termo da guerra colonial, recuperação das liberdades pessoais, civis e políticas, instauração de um regime democrático baseado na democracia representativa e na democracia participativa, sólidas instituições do Estado de direito, descentralização territorial nos municípios e nas regiões autónomas;
No campo económico e social: institucionalização de um "Estado social" avançado, assente na constitucionalização dos direitos laborais e sociais (educação, saúde, segurança social, etc.), uma economia de mercado temperada pela regulação pública e pela garantia pública dos "serviços de interesse económico geral", a que a integração económica europeia veio dar cobertura (a "economia social de mercado").
Se as revoluções se medem pelos seus resultados, esta pede meças a todas as anteriores revoluções nacionais.
2. Além disso, passados 50 anos, o regime democrático instaurado há meio século mantém uma notável vitalidade, apesar dos novos desafios (globalização, emergência de novos poderes, ameaças terroristas, movimentos migratórios, populismo, etc.). Nem a nova direita política de caráter populista radical ousa desafiar frontalmente os fundamentos constitucionais do regime.
A Constituição de 1976 - que é o estatuto jurídico-institucional da Revolução e das suas transformações políticas, económicas, sociais e culturais - é ja a segunda Lei Fundamental mais duradoura da nossa história constitucional, só superada pela Carta Constitucional de 1826.
Aliás, de entre as nossas constituições mais avançadas (as de 1822, de 1838 e de 1911), a CRP de 1976 foi a única que passou o teste do tempo, estando à beira de perfazer também os 50 anos. De resto, não sendo modificada há quase 20 anos, desde a pontual revisão de 2005 - o que prova o amplo consenso constitucional alcançado, que as várias revisões constitucionais ajudaram a estabelecer -, ela passa pelo maior período de estabilidade constitucional entre nós, desde 1885!
Os deputados da Assembleia Constituinte de 1975-76, entre os quais me conto, têm razões para se sentirem orgulhosos da sua obra.
3. Há evidentemte gente que, tendo-se empenhado, no auge da Revolução, na luta por transformações económicas, políticas, sociais e culturais bem mais radicais - nomeadamente a superação do capitalismo e da "democracia burguesa" -, sente que o saldo das "conquistas de Abril" foi escasso e que mesmo algumas que pareciam alcançadas (até porque inicialmente dotadas de garantia constitucional), como a nacionalização do grande poder económico e a reforma agrária, acabaram por perder-se ingloriamente. Não falta mesmo quem ouse proclamar que "não foi para isso que se fez o 25 de Abril".
Lamento discordar. Primeiro, tais objetivos não constavam dos propósitos originários da Revolução, os quais foram todos realizados, como se mostrou acima; segundo, aqueles objetivos "utópicos" nunca gozaram de uma maioria política ou sociológica de apoio, como se viu logo nas eleições para a Assembleia Constituinte, em 1975; terceiro, numa democracia constitucional, a própria Constituição está aberta à revisão, aliás dependente de maiorias políticas muito exigentes.
Seja como for, a Revolução portuguesa acabou por ir bem além dos seus estritos propósitos iniciais e foi seguramente bastante mais ambiciosa do que a transição democrática de outros regimes autoritários em numerosos outros países depois dela, na Europa e fora dela.
Por isso, a única mensagem que traduz apropriadamente o que devemos à Revolução de há 50 anos é: Obrigado, 25 de Abril!
Contra a corrente (6): A questão do número de deputados da emigração
1. O substancial aumento da participação eleitoral nos círculos eleitorais do exterior nestas eleições parlamentares veio alimentar a ideia de elevar o número de deputados que eles atualmente elegem (4), e até o comentador Marques Mendes veio ajudar a essa "missa", fazendo uma comparação com círculos eleitorais do território nacional com semelhante número de eleitores e que elegem mais deputados.
Penso, porém, que não se deve aumentar esse número. Primeiro, é a própria Constituição que afasta o critério do número de eleitores na determinação do número de deputados a eleger pelos residentes no exterior; segundo, como o número de deputados da AR não pode ser aumentado, o acréscimo de deputados dos círculos do exterior só poderia ser feito à custa de uma redução dos deputados eleitos no território nacional; terceiro, há muitos países, incluindo na Europa, que não conferem direito de sufrágio aos eleitores residentes fora do País (como a Irlanda), ou que deixam de o reconhecer passado um certo tempo de ausência do País (como a Dinamarca, dois anos).
A verdade é que nem a teoria democrática, nem nenhuma obrigação internacional, impõem a participação dos residentes no exterior na escolha dos parlamentos e dos governos nacionais.
2. E comprende-se bem porquê: os residentes no exterior não compartilham em geral das obrigações dos residentes, nomeadamente quanto ao pagamento de impostos (sem ignorar, todavia, a importância económica das remessas dos emigrantes), nem são afetados pela generalidade das políticas adotadas pelos respetivos parlamentos e governos.
No entanto, a democracia representativa é, por definição, a governação exercida pelos representantes eleitos direta ou indiretamente pelos governados, ou seja, aqueles que vão ser os destinatários das leis e das políticas governamentais adotadas e que sustentam o Estado com os seus impostos.
Os residentes no estrangeiro, muitos deles sem nenhuma conexão direta com o País e outros acumulando a nacionalidade do seu país de residência, só marginalmente compartilham de ambas aquelas dimensões da cidadania, pelo que faz pouco sentido que possam influenciar fortemente a escolha dos governantes.
3. Ora, mesmo elegendo só quatro deputados, os círculos do exterior estiveram à beira de decidir o vencedor destas eleições. Com a crescente fragmentação partidária, o aumento desse número faria aumentar exponencialmente esse risco, criando um problema de legitimidade política, mesmo ignorando os problemas de segurança e de integridade do voto no exterior.
Sendo indubitavelmente justificada, como instrumento de reforço do sentimento de pertença nacional, a representação política exterior deve, porém, ser proporcional à sua contribuição para os encargos da República e à medida em que compartilham dos seus problemas e das soluções políticas que lhes são dadas.
sábado, 23 de março de 2024
Falsas boas ideas (4): Fugir ao parlamento?
1. Esta ideia de o novo Governo minoritário legislar preferentemente por decreto-lei, evitando a AR, não tem pés nem cabeça.
Primeiro, há as muitas matérias de competência reservada da AR, sobre as quais o Governo não pode legislar, ou só pode fazê-lo sob autorização parlamentar, o que se não afigura viável sem negociação com os partidos de oposição; em segundo lugar, todos os diplomas legislativos do Governo, mesmo no uso de competência própria, podem ser chamados, ato contínuo, a controlo parlamentar e ser modificados ou revogados.
De resto, além de ser uma falsa solução, a proposta de "fuga ao parlamento" pode, pelo contrário, acirrar as oposições contra o Governo, piorando a situação deste.
2. Um governo minoritário está, por definição, mais dependente do parlamento do que um governo maioritário.
O poder legislativo governamental autónomo é uma ilusão quando se trata de governos minoritários, especialmente no caso deste Governo de direita, que tem menos deputados do que o campo político adverso - os partidos de esquerda - e que, portanto, precisa do apoio, e não somente da abstenção, dos demais partidos de direita.
Como primeiro esquema para atenuar a vulnerabilidade política de um Governo tão minoritário como este, a proposta de contornar o parlamento não é seguramente uma ideia brilhante. Exige-se melhor dos estrategos do Governo Montenegro.